quinta-feira, 26 de março de 2015

Pelo direito a uma infância feliz


Acabadinha de sair da faculdade, trabalhei numa Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco.
Solteira e boa rapariga, com quase nenhumas desilusões em cima do lombo, estava na fase em que o mal do mundo só acontecia aos outros, ou estava muito longe da minha janela.
Curiosamente, esta visão da vida foi-me preciosa no trabalho na Comissão. A ingenuidade que ainda me caracterizava ajudou a cicatrizar coisas más que vi por lá. Gente que queima os próprios filhos com cigarros, que os obriga a comer o próprio vomitado, que os prende em casa sozinhos. Gente de carne e osso, como nós, perto de nós, que não faz diferente, uns porque não sabem, outros porque não querem. E há uma linha ténue que os separa.
Trabalhar numa Comissão de Protecção durante seis anos, foi a maior, melhor e mais dura escola que poderia ter tido. E foi um enorme privilégio.
Sentei-me à mesma mesa com equipas de primeira água - psicólogos, médicos e enfermeiros, polícias, professores e educadores de infância, outros - que, em conjunto e num esforço hercúleo para defender sempre o superior interesse das crianças, conseguiram mudar o rumo a algumas vidas que não têm que ser um triste fado. Não podem ser.
A malta das Comissões de Protecção é, no entanto, um alvo fácil, porque faz uma intervenção de alto risco e de desgaste rápido, com tudo o que isso implica.
Mas nunca é demais relembrar {ou informar em primeira mão} que, quem lá está, não ganha nem mais um cêntimo por isso. E que o tempo de que dispõe para aquele trabalho {que é de "carácter prioritário}, depende da disponibilidade da entidade patronal respectiva, o que leva, tantas vezes, a só lá se estar uma tarde ou uma manhã por semana. Não era o meu caso, felizmente.
Quem lá trabalha, usa muitas vezes o carro próprio para diligências inadiáveis, e dispõe dos tempos da sua vida pessoal para fazer o que tem de ser feito. É amor à camisola. E aos miúdos.
Fui mãe pela primeira vez a trabalhar numa Comissão e a Comissão mudou-me para sempre.
Não voltaria, porque já tive a minha conta daquelas "durezas", mas tenho muitas saudades de ter a certeza que faço a diferença.

[a Campanha de Prevenção dos Maus-Tratos na Infância vai andar por aí, e incluirá a exposição de fotografia do talentoso Pau Storch "A infância não se repete, aproveite-a!", que poderão visitar, no Museu da Electricidade]



1 comentário:

macaca grava-por-cima disse...

"tenho muitas saudades de ter a certeza que faço a diferença". gostava de poder dizer isto... há muito que penso que gostava de fazer algo que fizesse realmente a diferença...